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imagem e receita Aqui |
Todos a conheciam por Maria do Seu Abelardo ou Maria do Sô Abelardo, depende da língua de cada um. Menos eu. Nunca tinha ouvido falar nessa senhorinha que já beirava lá os seus noventa e quase cem anos.
Seguia forte e firme na profissão de quitandeira. Quitandeira na família de meu avô materno é tradição. Parece uma doença que não tem cura, um carma, uma loucura tão grande que até quem é de fora e num elance entra pra família, acaba contaminado.
Era final de tarde no mês de setembro. Tínhamos caminhado pelas casas da parentela de mamãe. A estrada coberta de poeira, margeada por um cerrado sedento, a sede nos matando e a vontade de comer uma quitanda eu nem quero detalhar.
De repente mamãe parou diante de casa que mais parecia ter sido tirada do caderno de desenho de meus irmãos mais novos. Tinha uma janela, uma porta e um telhado em V de cabeça para baixo. Nada de fumaça, nada de cheiro bom saindo do forno... Sede e fome tínhamos aos montes. Éramos cinco derrotados naquele sertão.
- Ô de casa!
Bate palmas ... cachorro late ... de- re-pen-teeeee abre-se a janela, uma senhorinha muito resolvida põe o rosto e fica esperando nossa identificação:
- Sou filha de Marcílio, neta de Sá Luzia sua tia e prima de Barba, irmã de Deolinda. Afirmou mamãe.
- Vamô entrando. Océs num vieram em boa hora. Eu vou sair agorinha para ir à missa lá grupo.
-Tem missa lá na escola hoje? Que bom! É pertinho. a gente não vai demorar não. Só queria um pouco d`água pras crianças. Respondeu mamãe muito sem graça.
Fiquei com o rosto queimando feito brasa. Que vergonha! Nunca tinha visto alguém falar assim com as visitas. Na casa da Vovó sempre esperamos as visitas irem embora para depois sairmos. Vai entender essa gente antiga... Por um tempo todos ficamos calados até que saiu lá do quarto um homem de meia idade todo serelepe e foi logo se apresentando como o filho caçula de dona Maria .Foi estendendo a conversa e contando a sua vida em alguns minutos. Como podia falar tanto assim? O mais engraçado é que ele disse que era aposentado por que tinha doença grave do coração e não podia fazer nenhum esforço, nem o simples esforço de varrer um quintal, mas na sua serelepisse estava todo perfumado para ir dançar lá no bailão...
Enquanto esperávamos a água e o homem tagarelava, fiquei observando a minuscula sala daquela casa. A parede estava toda enfeitada com quadros: uma foto de dona Maria e de seu finado marido Abelardo, um quadro do coração de Jesus, outro do coração de Maria, santo Antônio, a Santa Ceia, um retrato do Papa e um enorme terço com contas de madeira que disseram ter vindo lá de Aparecida do Norte.
Quando dona Maria entrou pela sala e nos trouxe o jarro de água fresca foi um alívio. Mas num instante o sufoco apertou novamente quando sentimos um cheiro delicioso de café fresco. Mamãe percebeu nossa inquietude e levantou-se agradecendo pela água e dizendo que já iriamos embora. Nesse momento, o tal serelepe cujo o nome eu nunca fiquei sabendo, disse:
- Vai embora não! A mãe cabô de cuá um cafezím pra nóis.
Dona Maria foi para cozinha levando o jarro vazio e voltou com um bule verde meio descascado e umas canecas bem antigas e pouco esmaltadas. O cheiro era bom. Ninguém recusou o café. Mamãe percebendo nossa fome começou a conversar com dona Maria sobre as quitandas... quem sabe ela se lembrasse de uns biscoitos guardados numas latas que desde menina eram famosos na família!?
- A senhora ainda faz aqueles biscoitos de araruta com rapadura?
- Faço.
Começou a dar a receita para mamãe e nós com o estomago nas costas...
- Como ele fica? Perguntei.
- Eu tenho uns lá dentro. Océ qué experimentá?
- Não obrigada! Quero ( em pensamento ).
- Vou buscar!
Ela entrou para o quarto e eu estranhei. Biscoitos no quarto? Foi aí que mamãe me explicou que ela vende os biscoitos. Faz muitos de uma vez e guarda em sacos brancos dentro de latas bem grandes.
Trouxe os biscoitos num prato esmalto branco. Para nós eram os melhores que já tínhamos comido, mas a aparência ainda me é esquisita....
E foi assim que conheci dona Maria, parente distante. Resolvida como ela só. Famosa pelas quitandas. Dizem que quando ela saia com o balaio cheio e vinha caminhando em direção à praça, andava muito pouco para ver a mercadoria acabar.
Gente real, no reino do povo simples e feliz. Nessas horas é que entendo porque a felicidade está nas coisas simples.