Esse blog é uma homenagem às minhas avós, às avós do meu filho e a todas as mulheres que tem a doce experiência de serem avós. Acredito que no âmbito familiar poucas coisas são tão saudáveis quanto o estar na casa da vovó, desfutar de sua companhia, de seus quitutes e fazer descobertas diárias sobre o mistério que envolve a distãncia entre as coisas do tempo da vovó e a nossa vida cotidiana, principalmente quando somos crianças.

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quarta-feira, 11 de julho de 2012

Sá Luzia quitandeira


 Imagem google de sonspercutidos.blogspot

Hoje estava colhendo flores de São João na cerca à beira da estrada quando ouvi uma voz:
- Dia menina!
Olhei assustada e  respondi :
- Dia Sá Luzia!
- Tô querendo um dedo de prosa com vossa Vó.
-  Claro! Vamos chegando que a senhora já é de casa...
Parei de colher as flores e fui acompanhando as duas até a varanda onde Vovó limpava lágrimas de Nossa Senhora para fazer terços novos. Abri a porteira. Ela passou na frente e e seguiu chamando com sua voz não sei se roca ou já fraca pela idade.
- Ô de casa! Chica!? Tô entrando!
Sá Luzia sempre vem acompanhada de sua filha Bárbara, a única solteira dos dezesseis filhos que gerou. É uma moça de idade, muita acanhada, que vive de ajudar e acompanhar a mãe. É uma gente de vida simples, que se não for tratada com cerimônia fica ofendida. Por isso, larguei o que estava fazendo e fiz as vezes com as visitas. Caso contrário, levaria um pito de Vovó.
Sá Luzia é quitandeira das boas. Toda semana ela passa por aqui  trazendo muitos biscoitos para vender. Vende estrada a fora, batendo de casa em casa e mutias vezes nem precisa chegar até a cidade. Os biscoitos são vendidos no caminho. Sua fama já correu nas cidades vizinhas e muita gente que passa por aqui não vai embora sem levar as delícias feitas por ela. Dizem que é tradição de família. No tempo que Vovó era menina quem vendia as quitandas eram Sá Tônica e Sá Cota, mãe e avó dela. E pelo jeito Bárbara seguirá a tradição...
Tem um jeito muito antigo de se vestir. Usa uns vestidos longos, brancos, de algodão cru bem alvejado. Sempre o mesmo modelo de saia rodada, mangas três quartos e gola. Trás na cabeça um lenço de chita amarrado debaixo do queixo. Se faz frio , diz que é para livrar da friagem os ouvidos. Se faz calor, usa do mesmo jeito e com um sombreiro por cima. Não calça sapatos fechados, somente um precata de couro de boi feita pelos seus. Nunca sai sem uma manguara e os biscoitos coloca numa capanga de algodão bem grande que carregada dependurada no ombro. Ela trás uma e a filha nos dois ombros. Tem a pele muita fina e enrugada. Já é quase nonagenária. 
Por essas bandas, todos se conhecem e sabem um pouco da vida de cada um. Dizem que ela nasceu no tempo dos escravos, que foi moça muito bonita e enterrou três maridos. O primeiro casamento foi aos treze anos, com um homem bem mais velho e arranjado pelo pai. Teve quatro filhos e uma vida de fartura até que o homem caiu doente e durante anos ficou cuidando do enfermo com banhos de Sol.
Viúva, encontrou um marido mais jovem e teve outros doze filhos. Viveram felizes durante anos até  que Zé Gato morreu. Nunca soube o motivo do apelido desse homem, mas os mais velhos lembram bem desse tal Zé Gato.
O terceiro casamento foi complicado. Não teve filhos. A idade já estava avançada, tanto dele quanto dela. Contam que era um homem  que andava descalço e talvez por isso acumulava bichos de pé nas rachaduras do calcanhar. Serviço para os netos de Sá Luzia, que em respeito à avó, aliviavam os pés do avô emprestado, conhecido por todos como Antônio Corona. O casamento não durou muito, mas antes de morrer Coroné arruinou a vida de Sá Luzia vendendo o terreno onde moravam e tinham roça de alimentos e criação de animais, para um fazendeiro dono das terras que ficam do outro lado do rio. Dizem que o ricasso queria o rio só para ele e vinha comprando terras que margeiam o leito.
Como era analfabeto, Coroné firmou o dedo polegar no tinteiro e carimbou o papel que passava as terras para o nome do tal fazendeiro. Sem documentos que comprovavam a posse das terras, herança de seu primeiro casamento, Sá Luzia não viu o dinheiro e ficou sem ter onde morar, tendo que se sujeitar a uma morada de sapé em terras de gente conhecida e sobrevivendo da venda de suas quitandas.
De todos os biscoitos que faz, o que mais gostamos aqui é o biscoito de araruta com rapadura. Muita gente já ganhou dela a receita, mas ninguém consegue acertar o ponto. Imagino que ela nunca fez questão de contar o segredo por completo... Os outros também são muito saborosos e Sá Luzia é daquelas que só usa a farinha e o polvilho que ela mesmo prepara. 
As mulheres da família fazem bons biscoitos também, mas Vovó é freguesa antiga e nunca deixa de comprar essas delícias. Ela sabe bem como ajudar as pessoas...

5 comentários:

Imaginário disse...

Ô, trem bão, sô! Parabéns.
Saudade dessas coisas... Fiquei foi querendo saber o que queria Sá Lúzia com Vovó. Só vendê, será?!
Conta mais!
Abraços, Anabela.
Gilson.

Anabela Jardim disse...

Imaginário,
Agradeço pela visita e incentivo. Sá Luzia é personagem bem próxima... Não cheguei a conhecê-la, tudo que sei sobre ela são fatos contados por minha mãe e por minha já falecida avó que foi casada com o filho caçula dela. Portanto, é uma de minhas bisavós, nascida no último quartel do século XIX e tendo falecida aos 103 anos.

She disse...

Ahhhhhhh que delícia de texto! Fiquei aqui viajando em cada estrofe, estava com saudades de vc e de vir aqui! ;)
Beijo, beijo!
She

msgteresa disse...

Oi,Anabela!
Fiquei comovida com essa estória de gente simples,mas tão valorosa!
Lembrei-me de algumas pessoas que também conheci e que se pareciam com ela...Pessoas doces,honestas e de muita fibra, cujas estórias e lembranças ficaram pra sempre no meu coração!
E então ela foi uma de suas bisavós? Que doce e bela homenagem...
E parabéns,querida amiga, pelo emocionante e lindo texto!
Beijo no teu coração!
Teresa

Toninho disse...

Muito bom Ana, estes contos são otimos e nos remetem sempre para um lugar calmo de pessoas que se conhecem, onde a modernidade não chega. Belas lembranças Ana.
Seguindo este espaço inspirador.
Abraços.